Você raramente vai me ouvir dizendo que alguém é genial ou que o trabalho de alguém é vanguardista, mas não há outras palavras para descrever a arte e a carreira de Ali Prando. Artista multidisciplinar, cuja trajetória transita entre a música, a filosofia e a produção cultural, Ali explora sonoridades que unem o pop experimental ao pós-punk, com letras marcantes que abordam relacionamentos gays, homoerotismo e melancolia urbana. Na área da filosofia, Ali se dedica a reflexões sobre gênero, sexualidade e existencialismo, contribuindo para debates que desafiam normas sociais e promovem novas formas de pensar a experiência queer. Além disso, ele está à frente do TRANSFORMA MÚSICA, um festival que reúne shows e talks para explorar o impacto de artistas trans e queer na música contemporânea, reforçando sua posição como um catalisador de diálogos culturais e artísticos. Enfim, não faltam referências para o artista com quem eu tive a honra de dividir sorvetes aos domingos na adolescência, em Araçatuba, e que me abrigou nos meus primeiros dias em São Paulo. Hoje, se preparando para lançar seu novo projeto, o álbum Trabalhador Noturno, Ali divide com a gente suas atuais obsessões, que não só influenciam sua música, como também inspiram suas criações.
As cinco obsessões de Ali
Ali Prando (Instagram, Spotify, Transforma Música)
Cruising, do William Friedkin 🎥
“Um clássico do cinema gay moderno, Cruising é uma peça emblemática tanto na carreira de Al Pacino, protagonista do filme que havia acabado de sair de sucessos como "O Poderoso Chefão" e "Um Dia de Cão", quanto na trajetória de William Friedkin, que havia dirigido o hit absoluto "O Exorcista". O filme, completamente estilizado, provoca e divide opiniões até hoje: baseado em fatos reais, conta a história de Steve Burns, policial (interpretado por Al Pacino) que é escalado para investigar uma série de assassinatos que estão acontecendo na comunidade gay sadomasoquista de New York, a partir daí, a experiência passa a desencadear desejos mistos no oficial de justiça.”
“O filme foi gravado em cenas de clubes sadomasoquistas reais, muitas vezes com figurantes que frequentavam de fato aquele espaço, e sofreu boicote tanto da comunidade heterossexual que acusava de apologia à homossexualidade, e da comunidade LGBT conservadora, que engajava-se a partir do argumento de que aquela história não representava os gays, que buscavam por uma aproximação aos movimentos de doutrina normativa (casamento, religião e família). O resultado é uma obra-prima emblemática, original e ousada, que documenta e retrata o desejo e a sexualidade da comunidade gay pré-aids.”
“Cruising influencia diretamente a narrativa do meu próximo disco de música eletrônica experimental, "TRABALHADOR NOTURNO" (2025), onde encarno Miguel Ângelo, um acompanhamento masculino hedonista, niilista e narcisista que vive dentro de mim - e talvez, dentro da maioria de homens gays no contemporâneo.”
La Horde 🌌
“Coletivo artístico francês, La Horde tem deixado marcas gigantes na cultura pop contemporânea. Participaram das turnês de Christine and the Queens aka Rahim RedCar, Sam Smith, e mais recentemente, foram encarregados de dirigir a cena da "Celebration Tour" de Madonna, que passou pelo Brasil, arrastando mais de um milhão de pessoas para as areias de Copabacana, sendo o maior show de um artista solo realizado na história da música. Completamente cinematográficos, La Horde bebe de influências como David Cronenberg, Gene Kelly, Will Wright e Ludwig Wittgenstein. Em cena, eles apresentam coreografias intensas e dão destaque à ação, ao impacto do corpo e a própria teatralidade e performatividade composta por cada identidade e expressão de gênero - como se eles trouxessem a cultura queer novamente ao ballet e a dança.”
A Garota da Banda, Kim Gordon 📖
“Contemplativa e simultaneamente ruidosa, a autobiografia de Kim Gordon passa por temas como maternidade, feminismo, a cultura dos fãs e do it yourself, e os bastidores da cultura de rock'n'roll e música experimental norte-americana. Kim Gordon tem uma persona extremamente chill, e isso aparece em seus livros e álbuns. Seu mais novo disco, "The Collective" é basicamente a definição de cool, tudo o que uma anti-diva deveria alçar. O álbum trata de temas como ansiedade social, paranoia e masculinidade, tudo isso regado a doses cavalares de noise, industrial e trip hop. Tanto o livro, quanto o álbum, posicionam Gordon como uma artista de vanguarda que trabalhou por boa parte de sua vida para ampliar nossos sensos e processos de sensibilização auditiva.”
HOPECORE, Christine and The Queens aka Rahim Redcar 💿
“Sem sombra de dúvidas, um dos shows mais impressionantes que eu já vi na vida - e eu tive o privilégio de ver inúmeros - foi o de Christine and The Queens em São Paulo, durante sua era "PARANOIA, ANGELS and TRUE LOVE", onde ele encarnava em cena um anjo, um homem enlutado, e sua mãe, que acabara de morrer há pouco tempo. Em cena, Christine expressava sua dor e euforia de maneira completamente visceral - quase flertando com a loucura - nunca um artista pop global se colocou tão vulnerável, agudo e vivo daquela maneira nos palcos. Nesse ano, Christine and the Queens, agora assume sua transgeneridade masculina e cunha seu nome como Rahim RedCar. Em guerra com a sua própria gravadora, que tinha interesse em monetizar seu gênero, o artista simplesmente vazou o próprio disco de inéditas na internet. HOPECORE é uma coleção de músicas que rememora os clubes suarentos dos anos 90, mas que conta com os vocais angelicais, melancólicos e esperançosos de Rahim. Como um profeta pós-pop, vestido em vermelho e de cabelos azuis, ele está se apresentando numa club tour pela Europa, dispensando alegorias, grandes visuais, e focando na música e nos efeitos dela no próprio corpo. HOPECORE carrega referências do grande quebra-cabeça de música queer moderna, como Madonna, Pet Shop Boys, Erasure e Bronski Beat - foi completamente produzido, masterizado e mixado por Rahim. Devo dar destaque ao lead-single do álbum “DEEP HOLES”, pulsante e onírico, e “ÓPERA, I UNDERSTAND”, um registro corajoso e hipnótico que conta com vinte minutos, onde Chris faz uma espécie de prece catártica, como se estivesse tentando re-atar laços com o divino, com um amante ou consigo mesmo.”
Festival Transforma Música 🎤
“A segunda edição do Festival Transforma Música foi pensada desde o encerramento do primeiro ano do projeto. Nesse ano, o festival está mais queer, mais punk, e tem discussões mais incisivas e urgentes. A programação é completamente gratuita, e tem dois eixos: os talks que discutem temas como a crise dos festivais e shows ao redor do mundo, os algoritmos e plataformas de streaming, a importância dos clubes para a comunidade queer, inteligências artificiais e saúde mental na música. Enquanto nos shows, o Festival Transforma Música apresenta artistas de vanguarda-pop como VOTU, músico mineiro influenciado por Sophie, Retrigger, cyperpunk e pós-apocalíptico, GARBO, e seu repertório eletrônico sentimental, passando pelo punk e rock de Karina Buhr, que merece destaque na cena de música popular brasileira, tanto por sua postura política incisiva, quanto por seu legado de composições estimulantes e performance indomável. Os shows ainda tem Jonnata Doll e os Garotos Solventes, ao lado de Verónica Valenttino, importante atriz trans premiada que tem feito musicais e pautado debates ao redor do país, passando por Diameyka Odara, que tem relevância na cena do ballroom. Lhome Statue, um dos artistas mais importantes do eletrônico se apresenta ao lado de Zopelar. E o maior destaque é um happening que homenageia Liana Padilha, que encabeçou o NOPORN. Nesse happening, artistas como Getúlio Abelha, Jup do Bairro e Laura Diaz (Teto Preto) cantam suas músicas favoritas do duo que foi pioneiro do eletrônico no Brasil. A programação é completamente gratuita.”
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